Ensaio sobre nós



Ela é vento cortante no rosto em manhã fria. Coleciona sorrisos e mistérios quando olha pela janela do carro. Toma banho quente com as luzes apagadas e diz que é sua terapia. Acende velas cheirosas pela sala. Chora assistindo os mesmos filmes. Descobre músicas novas e ouve até enjoar. Insiste em dormir com ar condicionado ligado e seu cobertor infantil. Encara o pôr do sol todos os dias como se fosse novidade. Acorda e briga pra ficar na cama, mas nunca perde a hora. Não toma café da manhã mas fuma dois cigarros. Aos sábados que pode dormir, acorda cedo pra aproveitar o dia. Sempre tem livros ao lado da cama e usa um lápis pra riscar as partes que arrepiam.

Aquele dia amanheceu ensolarado e frio. Ele levantou cedo e fez café. Voltou pro quarto com uma xícara quentinha e ficou olhando pra ela, encolhida na cama, buscando coragem pra interromper aquele sono tão tranquilo. Sentou ao seu lado na cama e logo ela abriu os olhos e sorriu. Naquele momento o coração dele derreteu. Era inacreditável ela estar ali, na cidade dele, na cama dele, na vida dele. De novo. Quando ela sorriu ele paralisou, sorriu de volta, beijou sua testa e entregou o café.

Incrível a naturalidade com a qual ela andava pela casa dele, só de camiseta, pés descalços. Passeava pela sala como se fosse a dona daquele apartamento mal iluminado. Não precisava pedir licença pra revirar a vida dele mais uma vez. Ela sabia que era naquele abraço o melhor lugar pra encontrar proteção e paz. Ali se sentia em casa de novo. Ele precisava trabalhar, ela não deixou. Na despedida já na porta deu um beijo que foi o convite que ele esperava pra voltar para a cama desarrumada. 

E se amaram mais uma vez como se o tempo não tivesse passado. Conhecia o corpo dele como ninguém, cada pinta, cada cheiro escondido nas dobrinhas do pescoço. Era a definição de fazer amor. Olho no olho pra não perder nenhum segundo daquele momento, olho no olho pra gravar na memória pra sempre. Olho no olho pra tentar acreditar que estavam ali de novo como um só. Ele passava a boca por cada centímetro do corpo dela como se fotografasse. Ela deixava marcas das unhas nas costas dele como se tentasse segurar pra sempre. Ele perdeu o dia de trabalho, ela perdeu a cabeça. Valeu a pena.   

Estante amarela


O amor nem sempre acaba. É, com eles foi assim. Ainda havia amor, tesão, companheirismo. Só não cabia mais, um não cabia na vida do outro. Os pequenos hábitos da rotina o desagradavam agora. O que já a fez rir, já não tinha mais tanta graça. Ele saía sozinho, ela dizia que tudo bem. E realmente estava tudo bem, porque no fundo o que ela queria mesmo era estar só.
As horas passavam depressa no relógio que ele colocou na parede da cozinha contra a vontade dela. Ele chegava tarde, ela já dormia. Às vezes acordava com o peso dele na cama mas disfarçava. Já não queria trocar palavras, saber onde estava ou com quem. Já não queria beijo de boa noite.

Ele deitava pra dormir e pensava se era uma loucura se imaginar sem ela. Eram muitos anos, muitas histórias compartilhadas. Se sentia culpado e afastava os pensamentos. Ao acordar, eles ainda estavam lá. Ela começou a perceber o distanciamento, ficou triste e depois passou a se questionar. Era difícil admitir que ela também já não existia ali, naquele casamento, naquela relação. Ela já não era ela, ele já não era ele. Ficava nostálgica e se apegava nas lembranças pra desistir da ideia de tudo terminar.
Mas terminou.

Foram muitas conversas, ele não podia mais lidar com a vontade de ir embora. Ela hesitou, chorou. Choraram, se beijaram, se amaram uma última vez na cama com lençóis bonitos que ganharam de um casal de amigos. E ela foi. Seria muito difícil ficar, preferiu deixar tudo pra trás. Sua estante amarela, seu sofá, seus copos floridos e seu amor. Fechou a porta e foi como se não existisse chão dali pra frente. Se questionava sobre quem tinha se tornado, afinal parecia ser duas pessoas em uma. Ele era parte da sua personalidade, dos seus gostos, das suas histórias, da sua vida. Precisava se descobrir sozinha de novo.
E descobriu.

Cortou o cabelo - o que é quase um marco para fins de relacionamentos - e assumiu sua nova vida. Com tanta coragem que as pessoas custavam a acreditar, se reinventou. Se descobriu. Descobriu o prazer de uma casa só dela, com suas fotos, suas músicas, seus lençóis arrumados milimetricamente como ela fazia sempre questão. Descobriu outras bocas, outras conversas, outros interesses. Foi pro mato, pra praia, pro colo da mãe, pro abraço da amiga. Voltou a sorrir. Voltou a ser ela de novo, inteira, forte e linda. Estava mais linda do que nunca, mais ela do que nunca. Se viu completa pra poder dividir. Sem a estante amarela, voltou a amar.

Quarentena


Um vento frio insistia em entrar pela janela do quarto, deixando sua pele arrepiada e ainda assim a preguiça era maior e ela não levantou para fechar. Puxou o edredom e se cobriu até a orelha, o que trouxe um sentimento de infância. Sorriu.
Fechava e abria os olhos como se fosse suficiente para frear seus pensamentos. Encarava a parede mal pintada e se concentrava para não pensar. O que, claro, fazia com que pensasse ainda mais.

Ele estava sentado no sofá com o notebook no colo tentando trabalhar. A casa estava escura e abafada, o silêncio era quebrado pela televisão ligada em um filme sem sentido e o barulho dos seus dedos batendo no teclado. E como se passasse um vento, tímido e discreto, e soprasse a imagem dela em sua cabeça, pronto, ela veio. As lembranças atravessavam seus olhos diante da tela do computador.

Percebeu que não conseguiria dormir, era completamente em vão esperar o sono chegar. Se levantou, finalmente fechou a janela e foi pra cozinha. Um copo d'água primeiro, depois uma cerveja, se convencendo de que era pra ajudar com a insônia. Sentou na cadeira azul, acendeu um cigarro e admitiu. Não era insônia, era saudade acumulada. A cada gole da cerveja, uma mistura de raiva e indignação. Depois de tanto tempo, o que ele veio fazer aqui, na minha cabeça?

Não deu nem tempo de reclamar com as lembranças e ele já estava lá, usando as redes sociais pra investigar. Afinal, não é isso que as pessoas fazem? Pronto, era isso, precisava ver aquele sorriso pra lembrar da gargalhada e de como ela emburrava com facilidade. Percebeu que mudou o cabelo mas o resto continuava a mesma coisa, era a mesma menina de tantos anos atrás, sorrindo na tela. Os dedos começam a coçar de vontade de escrever, mas ela poderia nem responder. O medo maior era: E se ela responder?

E lá se foram três cigarros, a cerveja acabou. Vai até a geladeira e procura outra, não encontra. Revira os armários porque agora se convenceu de que precisa de álcool pra lidar com esses pensamentos sem nexo. Encontra uma garrafa antiga de uísque, despeja num copo e aceita que a noite será longa. Dando espaço às lembranças que estavam entrando por uma frestinha já escancarou de vez a porta, pegou seu celular e colocou aquela playlist antiga, quase proibida, pra tocar. Quer lembrar? Então vai, agora aguenta!

Ainda estava lá, parado na mesma foto, encarando o sorriso que um dia foi pra ele. Eram muitos sorrisos, muitas palavras, músicas, brigas, lágrimas, sexo com um amor que transbordava. Tudo nela transbordava, o que nem sempre era motivo para elogio, ele fez questão de lembrar. Foi passando as fotos na esperança de descobrir tudo que aconteceu com ela durante esses anos. Precisava saber. E a vontade foi crescendo e incomodando. Arriscando que ela ainda tivesse o mesmo número, digitou rápido e enviou antes que tivesse tempo pra arrependimentos. -Oi?

Ela estava na quarta música da playlist proibida, no cigarro que já perdeu as contas e na mesma bebida que dava arrepio a cada gole. A música foi interrompida. Não é possível. Ficou olhando pra tela do celular, aquela palavra tão pequena e insignificante. Não reconhecia o número mas sabia. Ela simplesmente sabia. Foda-se. -Oi...
 
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