Estante amarela


O amor nem sempre acaba. É, com eles foi assim. Ainda havia amor, tesão, companheirismo. Só não cabia mais, um não cabia na vida do outro. Os pequenos hábitos da rotina o desagradavam agora. O que já a fez rir, já não tinha mais tanta graça. Ele saía sozinho, ela dizia que tudo bem. E realmente estava tudo bem, porque no fundo o que ela queria mesmo era estar só.
As horas passavam depressa no relógio que ele colocou na parede da cozinha contra a vontade dela. Ele chegava tarde, ela já dormia. Às vezes acordava com o peso dele na cama mas disfarçava. Já não queria trocar palavras, saber onde estava ou com quem. Já não queria beijo de boa noite.

Ele deitava pra dormir e pensava se era uma loucura se imaginar sem ela. Eram muitos anos, muitas histórias compartilhadas. Se sentia culpado e afastava os pensamentos. Ao acordar, eles ainda estavam lá. Ela começou a perceber o distanciamento, ficou triste e depois passou a se questionar. Era difícil admitir que ela também já não existia ali, naquele casamento, naquela relação. Ela já não era ela, ele já não era ele. Ficava nostálgica e se apegava nas lembranças pra desistir da ideia de tudo terminar.
Mas terminou.

Foram muitas conversas, ele não podia mais lidar com a vontade de ir embora. Ela hesitou, chorou. Choraram, se beijaram, se amaram uma última vez na cama com lençóis bonitos que ganharam de um casal de amigos. E ela foi. Seria muito difícil ficar, preferiu deixar tudo pra trás. Sua estante amarela, seu sofá, seus copos floridos e seu amor. Fechou a porta e foi como se não existisse chão dali pra frente. Se questionava sobre quem tinha se tornado, afinal parecia ser duas pessoas em uma. Ele era parte da sua personalidade, dos seus gostos, das suas histórias, da sua vida. Precisava se descobrir sozinha de novo.
E descobriu.

Cortou o cabelo - o que é quase um marco para fins de relacionamentos - e assumiu sua nova vida. Com tanta coragem que as pessoas custavam a acreditar, se reinventou. Se descobriu. Descobriu o prazer de uma casa só dela, com suas fotos, suas músicas, seus lençóis arrumados milimetricamente como ela fazia sempre questão. Descobriu outras bocas, outras conversas, outros interesses. Foi pro mato, pra praia, pro colo da mãe, pro abraço da amiga. Voltou a sorrir. Voltou a ser ela de novo, inteira, forte e linda. Estava mais linda do que nunca, mais ela do que nunca. Se viu completa pra poder dividir. Sem a estante amarela, voltou a amar.

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